Se preocupa,
não, moreno, que hoje sou eu quem vai falar. Não meu orgulho, ou egoísmo, ou
o que quer que se atreva a assustá-lo com exigências arbitrárias. Senta um pouco que o papo
vai ser longo e pode até cansar, mas te juro, é preciso dizer tudo de uma vez.
E quero, antes, deixar registrado para que você não confunda um simples
desabafo com cobrança. Porque, não, não é sobre você, é sobre mim.
Desculpa se
só enxergo agora, mas foi sempre-sobre-mim: as idealizações exacerbadas, as
reclamações tolas e copiosas, os pedidos infantis e o resto da baboseira toda.
Tudo eu tentando fazer você acreditar que ainda sou a melhor para você e a
verdade é que, talvez, eu não seja mesmo. Mas, tudo bem, porque resolvi sair da
clausura do quarto para buscar minha redenção. Percebeu? Já é um começo! Só que,
dessa vez, não vou simplesmente esperar que o tempo feche, cure, passe, conforte
e o diabo a quatro.
Eu descobri,
moreno, o que estava na minha frente este tempo todo. A placa de saída, bem no
meio da minha testa. Sou eu quem precisa mudar. Sou eu quem precisa superar os
traumas. E eu estou, cara, cheia deles. Bem lá no fundo, monstros de anos e
anos, até de antes de você chegar. Todos acumuladinhos, espremidinhos por todo
canto.
Eu sofro de
raiva, moreno. Em metástase. Tem raiva no fígado, raiva nos pulmões, na
garganta, nas palavras, nas rugas da cara fechada. Tudo aqui, esse tempo
inteiro, e eu apontando os problemas para os rumos errados. O problema sou eu.
E a solução está em mim. Não em você ou no próximo relacionamento falido.
Porque é assim que ele e qualquer outro terminarão se eu insistir em carregar
essa fúria comigo. Já tá pesando, sabe. E é hora de desocupar a bagagem.
Não queria
ter que dizer o quanto o quadro é complicado para não se tornar um mantra, mas,
você precisa ter ciência de que leva algumas estações até sarar. E, não,
issaquí tampouco é um pedido de espera. É só pra você saber que eu estava certa
o tempo todo. E estava lá, no meio das nossas conversas, a resposta, prontinha
pra gente. Pra mim. Você é mesmo minha alma gêmea, moreno. Bem como lhe falei
naqueles primeiros e-mail trocados, sem conhece-lo direito.
Citei o
livro que tinha lido. Destaquei a passagem que fiquei remoendo horas a fio, pois
não sabia se concordava por completo. Dizia assim: “[...] As pessoas acham que
a alma gêmea é o encaixe perfeito, e é isso que todo mundo quer. Mas a
verdadeira alma gêmea é um espelho, a pessoa que mostra tudo que
está prendendo você, a pessoa que chama sua atenção para você mesmo para que
você possa mudar a sua vida. Uma verdadeira alma gêmea é provavelmente a pessoa
mais importante que você vai conhecer, porque elas derrubam as suas paredes e
te acordam com um tapa [...] As almas gêmeas só entram na sua vida para revelar
a você uma outra camada de você mesmo, e depois vão embora.”
Você deve
imaginar muito melhor agora essa minha dificuldade para deixar as coisas e
pessoas irem. Porque continuo almejando que você fique. Mas é você, moreno. Agora eu sei, você tinha que me mostrar o que estava me
matando. E eu precisava saber antes que isso me eliminasse sem, ao menos, me
dar a chance de tentar uma cura. E, olha, já entendo que eu não preciso ser a
sua alma gêmea também. Reciprocidade é algo que a raça humana inventou para
massagear o ego. Eu esperei tantas coisas em troca e isso só me deixou mais
doente quando elas não saíram conforme as minhas expectativas. Mas, amor se dá
e só.
Agora tenho que puxar parte desse afeto pra mim. É apenas
um componente do processo, senão não faria sentido “amar o próximo como a si
mesmo”. Que tipo de apreço seria esse, afinal? Estou assimilando as respostas e concretizando uma recuperação. É lenta, viu, e às vezes parece não ter jeito. Mas
te digo que é preciso parar um pouco de conjecturar teorias sobre tudo e olhar
mais para dentro de si mesmo. Às vezes, a gente se perde ao se distanciar do eu
verdadeiro e o resultado de quem a gente se torna nem sempre é uma reação
positiva.
Então isso
aqui é para você saber que agora estou muito mais na minha. Que eu
não quero o que você não pode me dar. Que você não deve se sentir cobrado por
nada. Que você não é o único responsável por aquilo que cativa. Que eu não preciso de
um pai ou guardião... Só te peço um pouco de cuidado para não desenvolver compaixão
de mais em vez de respeito.
Essa mudança não é por você, moreno, é por mim. E, claro,
você pode segurar minha mão, se quiser. Mas só se quiser.
f.